Tuesday, January 10, 2006

A prática da tradução literária

A tradução literária convoca sensibilidades e competências diversas, em torno de textos que se enquadram na multiplicidade de géneros, estilos e registos que a literariedade pode assumir. Como fundamentação, a teoria existente é escassa, fragmentada e muitas vezes contraditória. O trabalho de tradução e a reflexão em seu redor serão, por isso, desenvolvidos com maior interesse e melhor resultado no contexto de aulas práticas, organizadas em pequenos grupos, com grande concentração e motivação.
No texto literário, o estilo partilha da relevância significativa do próprio conteúdo, da mensagem a transmitir, pelo que a sua tradução obriga à preservação do estilo como componente essencial do significado. A tradução não-literária inclui estratégias que permitem alcançar a maior proximidade linguística possível ao original. No texto literário, porém, a equivalência visada não se limita à aproximação linguística: a conotação, o efeito estético e tantas outras variáveis estilísticas são factores essenciais à sua tradução.
Na prática da tradução literária é clara a importância da compensação, enquanto estratégia de obtenção de equivalência. Assim, por exemplo, ao traduzir um texto rimado no original, a dificuldade em obter essa mesma rima na língua de chegada poderá ser compensada por aliterações e assonâncias que manterão uma certa musicalidade. Do mesmo modo, o contexto cultural de uma passagem literária complementa a equivalência linguística e estilística visada. A sua tradução deverá ter consciência das implicações tanto literárias como ideológicas relacionadas com uma eventual opção entre a transposição ou a adaptação das questões culturais. Por essa razão, é essencial que o tradutor construa para si uma sólida e sempre actualizada cultura geral.
A relação entre escrita criativa e tradução pode ser explorada com excelentes resultados. Com efeito, encorajar os estudantes de tradução literária a desenvolver o seu próprio estilo e a encontrar por si mesmos soluções inovadoras é factor de interesse e sucesso acrescido. A criatividade individual e a autoconfiança apoiam-se na compreensão intuitiva dos limites, não da interpretação (para citar Umberto Eco), mas da própria tradução. Essa intuição dificilmente será ensinada, contudo pode ser guiada e fundamentada na atenta leitura e análise do texto original. Daqui se depreende a essencial complementaridade interdisciplinar entre o ensino e a aprendizagem da tradução literária e o ensino e a aprendizagem das diversas literaturas, culturas, estilísticas e retóricas. Qualquer programa de tradução literária a um nível superior implica a capacidade prévia e/ou simultânea de analisar e avaliar um texto, de modo a que seja possível proceder com eficiência à sua transposição para outra língua.
É profundamente compensador para qualquer praticante de tradução literária, docente ou discente, descobrir padrões estéticos até aí ocultos num texto aparentemente opaco ou aperceber-se de que alcançou na sua recriação algum do ritmo encantatório que tanto o fascinou no original. À musicalidade, ao ritmo e à imagética que contribuem para a literariedade do texto original associam-se os paralelismos sintácticos e semânticos, estes últimos mais complexos de detectar e transferir sem um rigoroso conhecimento do léxico das línguas em co-presença. Igualmente relevante é a detecção e aceitação da ambiguidade, componente fulcral de muitos textos literários. Como consequência, o tradutor deverá ser capaz de resistir à tentação de a desvendar, de a simplificar, opção que radicaria no empobrecimento da pluralidade semântica do original.
No ensino e na aprendizagem da tradução literária explora-se o texto na expectativa de detectar, reconhecer e avaliar os recursos estilísticos que estão na base da sua literariedade. Este processo conduzirá, por seu turno, à tomada de decisões sensatas sobre aquilo que manter e aquilo que comprometer, com o objectivo último de alcançar uma equivalência dinâmica entre o texto original e o texto traduzido. Porque traduzir nasce do equilíbrio entre duas acções aparentemente simples: reter e adaptar, em conformidade aos modelos vigentes da literariedade. Mas se os conceitos de estética literária evoluem no espaço e no tempo e coexistem numa miríade de conceitos paralelos, cada texto literário acabará por criar as suas próprias normas de leitura e de interpretação, logo, de tradução. Ao tradutor resta a estratégia imutável da precisão (ou seja: da competência, do profissionalismo) que se traduz – jogando com a palavra – no bom conhecimento das línguas de trabalho, com especial incidência no conhecimento profundo, tão intuitivo quanto informado, e no manuseamento hábil do seu mais precioso recurso: a língua materna.
Clara Sarmento